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Memórias

     Acredito que a minha busca no resgate da confeitaria elementar ocorre, principalmente, em função das minhas memórias de infância. Das experiências na cozinha com as mulheres da minha família que conseguiam levar para a panela ingredientes simples, regados com açúcar cristal, cravo e canela e nas receitas mais complexas entravam no máximo ovos, manteiga, a banha de porco e o leite de coco. Vez ou outra algo especial, ameixa seca, uva passa, frutas cristalizadas e alguma castanha. O tão aclamado leite condensado só conheci bem mais tarde, já na adolescência, quando descobri as mousses e o irresistível e cremoso pavê.

     As aventuras nos pés de goiaba e manga na busca daquela fruta que só os passarinhos alcançavam me renderam cicatrizes que ainda hoje marcam minha pele. Se as cicatrizes marcam a pele, as recordações marcam o coração que pulsa acelerado e encantado por este universo fascinante da transformação do alimento simples em algo um pouco mais elaborado, mais saboroso e sempre mais rico.

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     Como não falar do doce de figo da tia Lu - ainda por parte da minha mãe- lá no fundo da geladeira dentro de um pote de vidro que era alvo de várias investidas sorrateiras minhas, sempre que passava férias na casa dela. Aquele bocado ao mesmo tempo firme e cremoso, com aquela caldinha com gosto de cravo era, sem dúvida, uma das coisas que eu mais amava, só não sei dizer qual é mais aclamado por mim entre o doce de figo, as bolinhas de queijo com ovos cozidos em calda simples e o doce de leite. Difícil escolha ainda hoje.

     E se o favo de mel era meu chiclete, as pedrinhas do açúcar mascavo eram minhas balas preferidas. Um pouco mais macias que a rapadura, durinhas o suficiente para serem mantidas na boca, eram as grandes culpadas de eu ficar no pé do meu vô João, pai do meu pai, pedindo para irmos até o engenho, local onde ele produzia e armazenava em latas de 20 litros o açúcar mascavo, melado de cana, e as suas deliciosas e imbatíveis rapaduras macias com doce de abobora e mamão verde. Há 40 anos, ele fazia doce de cidra para não desperdiçar as cascas das laranjas produzidas no pomar da chácara. Em nosso último encontro, por ocasião do meu casamento, aprendi mais uma coisa. Ao ver ele pegando a banana com a casca toda pintadinha de preto para comer disse: “Vô, pegue outra, esta deve estar estragada”. Ele respondeu, tirando a casca: “Esta é a melhor, viu? Está perfeita. Não devemos desperdiçar alimento”. Acredito que ainda por influência do meu vô, que hoje tento desenvolver produtos que utilizem integralmente o alimento.

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     E como falar das minhas memórias de infância sem falar dos doces da minha mãe. Em uma época que leite condensado era sinônimo de status, as receitas dela eram a base de ingredientes muito simples, muito a base do que tinha na dispensa, o que não era muito. Na minha lista de preferência estão o doce de mamão verde, doce de leite azedo, bolo invertido de abacaxi e de banana, os sequilhos e fubá e nas comemorações especiais, Natal ou Páscoa, o delicioso e cremoso manjar com calda de ameixas. Este era feito especialmente para meu pai, mas eu amava o doce e o suspense na hora de desenformar.

     Até começar a pensar a respeito não tinha me dado conta destas influências. Hoje tenho certeza de que todas as experiências, tudo o que vivi na minha infância, contribui grandemente para meu resultado na cozinha e foi de extrema importância para eu chegar até aqui.

     Recordo estes momentos para reforçar a convicção de continuar acreditando neste resgate ideológico: produzir algo que além de bonito e gostoso seja verdadeiramente um alimento para nosso corpo.

 

Gratidão a cada um!